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A ESTRATÉGIA DA OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA E A VENDA CASADA NO SETOR AUTOMOTIVO BRASILEIRO: O CASO DA CORREIA DENTADA BANHADA A ÓLEO

  • Demosthenes Advocacia
  • 8 de mai.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de mai.


A imagem é uma pintura digital surrealista em estilo semi-realista, mostrando um motor de carro moderno à esquerda, gotejando óleo preto. À medida que o óleo escorre, ele se transforma gradualmente em um cifrão (\$) tridimensional brilhante. À direita, uma mão humana robusta segura uma chave de oficina que tem a aparência de uma algema, sugerindo prisão ou dependência. O fundo é escuro e sombrio, com iluminação suave que destaca os elementos mecânicos e simbólicos, criando um contraste entre tecnologia, trabalho e valor monetário.

O presente texto visa a analisar criticamente uma confluência de práticas no setor automotivo brasileiro que suscitam sérias preocupações sob a ótica do Direito do Consumidor e da ética mercadológica. Abordaremos a controversa adoção da tecnologia de correias dentadas banhadas a óleo, a aparente ausência de alternativas por parte de algumas montadoras no mercado nacional – mesmo quando disponíveis em outros países – e como supostas "soluções" para problemas crônicos podem configurar práticas abusivas, notadamente a venda casada.


A estratégia subjacente parece seguir um roteiro preocupante: introduzir um produto com potencial de falha prematura, saturar o mercado com ele, contar com uma fiscalização branda por parte das autoridades e, por fim, comercializar a "solução" sob um modelo que vincula o consumidor a serviços onerosos.


1. Entendendo a Venda Casada no Direito do Consumidor Brasileiro


No ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) veda expressamente práticas que restrinjam a liberdade de escolha do consumidor. Dentre elas, destacam-se a "venda casada" e a "venda casada às avessas", ambas consideradas abusivas.


  • Venda Casada Tradicional: Prevista no artigo 39, inciso I, do CDC, ocorre quando o fornecedor condiciona a aquisição de um produto ou serviço à compra compulsória de outro, sem que haja justa causa para tal. O intuito é alavancar a venda de um segundo item, aproveitando-se do interesse do consumidor no primeiro. Exemplos incluem condicionar um empréstimo à contratação de um seguro específico da mesma instituição ou proibir a entrada em cinemas com alimentos adquiridos externamente, forçando o consumo no local.

  • Venda Casada às Avessas (ou Indireta/Dissimulada): Nesta modalidade, o consumidor adquire o produto ou serviço principal, mas o fornecedor restringe as opções para seu uso pleno ou para a aquisição de itens complementares, direcionando-o a adquirir produtos ou serviços acessórios exclusivamente de sua própria rede ou de parceiros indicados. Embora não explicitamente denominada "às avessas" no CDC, essa prática é enquadrada como abusiva por violar os mesmos princípios da liberdade de escolha e da boa-fé. A proibição de alimentos externos em cinemas, após a compra do ingresso, também se encaixa aqui, pois restringe o uso do serviço principal (assistir ao filme) ao consumo de produtos do próprio estabelecimento.


2. A Controvérsia da Correia Dentada Banhada a Óleo no Brasil


O sistema de sincronização do motor é vital, assegurando que válvulas e pistões trabalhem em harmonia. Tradicionalmente, utilizam-se correntes de comando (consideradas de alta durabilidade, muitas vezes para toda a vida útil do motor) ou correias dentadas secas (com substituição periódica, geralmente entre 60.000 km e 100.000 km).


Recentemente, ganhou popularidade no Brasil a tecnologia da correia dentada banhada a óleo (ou "wet belt"). A promessa teórica era de maior durabilidade, redução de atrito e melhoria na eficiência do motor, com intervalos de troca estendidos, como os 240.000 km anunciados para modelos como o Chevrolet Onix.


Contudo, a realidade tem se mostrado distinta. A tecnologia, que não é nova1 e já apresentou problemas em motores como o Ford EcoBoost por volta de 2015 e até antes, ressurgiu com força. A principal crítica reside na degradação prematura da correia devido ao contato com o óleo do motor, especialmente se este não atender a especificações rigorosíssimas ou sofrer contaminação. O esfarelamento da correia pode levar à obstrução de dutos de lubrificação e, em última instância, à falha catastrófica do motor.


No Brasil, modelos como o Chevrolet Onix equipados com motores 1.0 turbo adotaram essa tecnologia. Multiplicam-se relatos de proprietários sobre falhas prematuras, mesmo em veículos com baixa quilometragem e com manutenções supostamente em dia, inclusive realizadas em concessionárias. A culpa, inicialmente, foi frequentemente atribuída ao consumidor, por suposto uso de óleo inadequado.23


Agrava a situação o fato de que, em outros mercados, como o mexicano e o norte-americano, a mesma montadora (Chevrolet, no caso do Onix) oferece alternativas com motores equipados com corrente de comando – sistema reconhecidamente mais robusto e com menor incidência de falhas prematuras4. O Onix mexicano, por exemplo, utiliza um motor 1.3 aspirado com corrente. Essa disparidade sugere uma seleção tecnológica para o mercado brasileiro que, intencionalmente ou não, expõe o consumidor a um risco maior e a custos de manutenção potencialmente elevados.


3. A "Solução" da Montadora e a Configuração da Venda Casada às Avessas


Diante do crescente número de reclamações e do impacto negativo na imagem de seus veículos, algumas montadoras propõem "soluções". No caso do Chevrolet Onix, conforme noticiado pelo blog AutoPapo em texto de Boris Feldman (publicado em 30/04/2025), a General Motors (GM) convocou proprietários para uma verificação da correia.


A proposta consiste em:


  1. Inspeção da correia.

  2. Se a correia estiver em bom estado, troca-se o óleo e o filtro ao custo de R$ 660. A garantia da correia seria estendida até 240.000 km, desde que todas as revisões futuras sejam feitas na concessionária.

  3. Se a correia necessitar de troca, esta custaria R$ 700 (além dos R$ 660 da troca de óleo, totalizando R$ 1.360, segundo interpretações de consumidores), com a mesma condição de garantia vinculada às revisões na rede autorizada.


Essa "solução", enaltecida como uma "bela sacada da fábrica" pelo referido blog, é, sob a ótica do consumidor, profundamente questionável e configura um exemplo claro de venda casada às avessas. O consumidor, já lesado por adquirir um produto com um componente de durabilidade duvidosa, é coagido a arcar com custos de inspeção/troca e, crucialmente, a vincular-se à rede de concessionárias para manutenções futuras sob pena de perder a garantia de uma peça sabidamente problemática.5


A crítica se intensifica ao considerarmos o custo das revisões em concessionárias, geralmente muito superior ao de oficinas independentes de boa reputação. Conforme cálculos de leitores do próprio AutoPapo, ao longo de 240.000 km, a diferença de custo com trocas de óleo pode chegar a R$ 9.600 (considerando 24 trocas com R$ 400 de ágio por troca) ou até R$ 19.200 para quem roda em condições severas e troca óleo semestralmente.


Este valor adicional pago pelo consumidor para manter a “garantia” de um componente que não deveria falhar prematuramente excede, em muitos casos, o custo que a montadora teria ao realizar um recall genuíno e solucionar o problema de projeto.


A fabricante, portanto, não assume a responsabilidade por um possível vício oculto do produto através de um recall, mas transfere o ônus financeiro e a mitigação do risco para o consumidor, fidelizando-o compulsoriamente à sua rede de serviços.


4. A Indústria, o Consumidor e a Necessidade de Transparência


A estratégia de introduzir tecnologias que, apesar de promessas de eficiência e durabilidade, resultam em menor vida útil de componentes essenciais ou em dependência de manutenção onerosa e cativa, levanta suspeitas sobre uma obsolescência programada velada. O objetivo parece ser não apenas vender o veículo, mas garantir um fluxo de receita contínuo através de peças e serviços.


Quando a imprensa automotiva, por vezes, minimiza as queixas dos consumidores como "criar terror"6, desconsidera o direito fundamental do consumidor de reclamar por produtos defeituosos e de exigir soluções justas e transparentes, não artifícios que oneram ainda mais quem já foi prejudicado.


Conclusão


A situação envolvendo as correias dentadas banhadas a óleo no Brasil, exemplificada pelo caso do Chevrolet Onix e a "solução" proposta pela GM, transcende uma mera questão técnica. Ela expõe uma tática comercial que beira o abusivo, onde um problema potencialmente criado ou mal gerenciado pela fabricante se transforma em uma oportunidade para impor condições desvantajosas ao consumidor, caracterizando a venda casada às avessas.


É imperativo que os órgãos de defesa do consumidor e as autoridades competentes investiguem tais práticas. Os consumidores brasileiros merecem produtos confiáveis, informações claras, liberdade de escolha para a manutenção de seus veículos e, acima de tudo, respeito aos seus direitos, incluindo o de não serem penalizados por falhas de projeto ou por estratégias que visam apenas o lucro em detrimento da durabilidade e da satisfação do cliente. A oferta de tecnologias mais robustas, já disponíveis em outros mercados, deveria ser uma prática padrão, e não uma exceção, no mercado nacional.




Como citar:

(DEMOSTHENES, Felipe. A ESTRATÉGIA DA OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA E A VENDA CASADA NO SETOR AUTOMOTIVO BRASILEIRO: O CASO DA CORREIA DENTADA BANHADA A ÓLEO. Blog DEMOSTHENES ADVOCACIA, 2025. Disponível em: https://advfrdm.wixsite.com/advfrdm/post/a-estrat%C3%A9gia-da-obsolesc%C3%AAncia-programada-e-a-venda-casada-no-setor-automotivo-brasileiro-o-caso-da. Acesso em: 12 maio 2025.)

 
 
 

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